23/04/2008

Morte 3 - Hello Chucky

Era noite. Madrugada. Já passavam das duas horas. Lucíola, como sempre dedicada, fazia serão. Mas como havia somente ela no caixote de concreto gentilmente chamado de escritório, pensou que não haveria problemas em parar um pouco o ritmo frenético de trabalho intelectual para se dedicar ao que gostava mais: cuidar de sua boneca Hello Chucky. Foi para a sala em que não havia câmeras de vigilância e começou a pentear os cabelos loiros de vassoura piaçava de sua querida boneca. Cantarolava. Sorria. Era o momento mais feliz de seu dia: quando penteava sua boneca. Súbito! A Luz se apagou O breu. Gato mia. Cabra cega. Do lado de fora, os tiros de fuzis da favela vizinha ecoaram, rasgando o silêncio. Lucíola engoliu seco, mas nem houve tempo de pânico. A luz acendeu novamente. O barulho dos computadores esquentando retornaram. Lucíola já se preparava para continuar a escovação quando percebeu. Meu Deus! Onde está Hello Chucky? Sem parar pra pensar, começou a gritar seu nome: Hello Chucky! Hello Chucky!. Mas como ela poderia responder, objeto inanimado que era!? Não respondeu! Mais esperta, desconfiou de que talvez houvesse mais alguém ali; a fim de lhe pregar uma peça. Ei! Quem é que pegou minha boneca? Pare com isso! Creuzo? É você? E as perguntas ficaram sem respostas mais uma vez. De repente, Lucíola ouviu passos vindos da escada. Levantou-se. Questionou em voz alta, novamente: Quem é que tá aí? Nada! Os passos continuaram e ela resolveu seguí-los. Lucíola já se encontrava no meio da escada quando a luz fez-se ausente, mais uma vez. Parou. Ponderou por segundos. Decidiu prosseguir em seu trajeto, corajosamente. Os passos cessaram, mas um outro barulho tomou seu lugar; algo como folhas sendo rasgadas na sala da recepção, detectou Lucíola. Ao adentrar o local, tateando, Lucíola nem pôde respirar direito; foi atacada por um ser diminuto que se agarrou em sua face. A luz voltou, novamente, e Lucíola pôde ver: era a face da loucura, da demência, na frente dos seus olhos; Hello Chucky de olhos arregalados, sorrindo para ela; as duas perninhas rechonchudas bem firmes em seus ombros, uma de suas pequenas mãozinhas de plástico agarrando seus cabelos e a outra, segurando uma folha de uma revista especializada em energia elétrica, que fazia movimentos horizontais e produzia cortes em sua carne. Hello Chucky gritava de prazer. Lucíola estrebuchava de dor. Um peão em cima do dorso do animal. Uma passada da folha fina no pescoço de Lucíola foi o suficiente para abrir-lhe um veio e fazer jorrar o sangue azul real. Hello Chucky saltou, caindo no chão, sentada. Era uma boneca inofensiva novamente. A luz da sala de recepção acompanhou a agonia de Lucíola; entrou em parafuso, acendendo e apagando, enquanto Bretão se debatia entre os móveis, tentando conter o sangue que insistia em escapar pela fresta de seus dedos.

18/04/2008

Morte 2 - A Hora da Estrela

Lucíola entrou naquela sala encardida. Havia seis mesas, divididas em duas fileiras e encostadas perto das paredes. Ninguém ali sequer levantou os olhos na direção da porta para sinalizar que havia notado sua presença. Irritou-se, mas, exceto por uma agitação nervosa na mão direita, permaneceu imóvel.
Respirava abruptamente. As sobrancelhas pesavam. Trazia um papel que precisava ser assinado por uma pessoa dali. A recepção inócua, no entanto, fez com que esquecesse por um momento da obrigação. O objetivo agora era outro.
Precisava dar um jeito de chamar a atenção. Tossiu quixotescamente, porém todos ali eram surdos - pelo menos para ela. Em nenhum momento pensou em dirigir a palavra a qualquer um dos seres que habitavam o recinto. Preferia conversar com as mesas, mas não arriscou, já que elas a tratariam como uma porta. Até que, talvez inspirado pelo cheiro doce e ocre daquele gabinete, um lampejo criativo surgiu na cabeça da moça.
Deu as costas para os burocratas, caminhou para fora da sala e não fechou a porta. "Ei!", gritou alguém. Cinco segundos depois, Lucíola correu para dentro, em direção ao corredor estreito formado pela disposição dos móveis, com os braços estendidos à frente do corpo. Inclinou-se para frente. Os braços apoiaram no chão, as pernas descreveram uma linha curva e os pés apontaram para cima por alguns segundos, tombando em seguida.
O baque surdo do retorno ao solo ecoou. Ela abriu um sorriso e olhou para todos, buscando aprovação. Não obteve resposta. Na sala, apenas as mesas observavam Lucíola. Não entendiam como uma porta poderia virar uma estrela.
Lucíola piscou. Uma, duas, sete vezes por segundo ao quadrado. Berrou um palavrão. Deu chilique. Ninguém se movia. Saiu da sala bufando, até que alguém gritou:
- FECHE A PORTA!
- AH! PARA ISSO VOCÊS DÃO ATENÇÃO? - bradou Lucíola, histérica, voltando ao recinto com um machado.
- Olha o que eu faço com essa porta!, disse, enquanto desferia golpes violentos no já disforme compensado de madeira, até reduzi-lo a pequenas farpas. Ofegante, ajoelhou-se no chão e começou a chorar.
-Fecha a porta! Feche a porta! A porta! Feche a porta! A PORTA! FECHE A PORTA! - ordenavam múltiplas vozes na sala. Lucíola tapava os ouvidos e sacudia a cabeça. Pegou o machado e avançou em direção a uma das mesas.
Um tiro ecoou.
As seis pessoas da sala, incluindo o autor do disparo, fizeram um círculo em volta do cadáver de Lucíola. "Feche a porta", sussurravam. "Feche a porta."
Feche a porta.

01/04/2008

Morte 1

Breno adentrou ao escritório sem janelas. A luz fria trepidava. Antes de receber um oi de Lucíola, já foi sacando da cintura a faca afiada estilo Rambo. Um arremesso seco, certeiro, que foi morrer entre as sombrancelhas peludas de Lucíola. Sua cara de retardada feliz nem se estabeleceu e já deu lugar ao terror. Olhos arregalados, língua para fora. Enquanto estrebuchava no chão, embaixo da mesa, e estendia a mão direita implorando por socorro, Breno sentava-se em frente ao computador. Precisava terminar o trabalho ainda hoje. O famoso dead line.