30/05/2008

Morte 5 - Um sonho de infância

Enquanto um tal de João de Santo Cristo sonhava em ser bandido, Lucíola Bretão sonhava em ser a mocinha da história. Mas eles tinham coisas em comum: o pai de ambos tinham morrido com um tiro e não entendiam como a vida funcionava, principalmente por causa da discriminação da sua classe e sua cor.
Então, juntos, cansaram de tentar achar resposta e compraram uma passagem direto para Salvador. O tempo passou e Lucíola não se sentia feliz. Lá não havia festa anos 80 e tão pouco João de Santo Cristo parecia com o Bon Jovi, então decidiu-se que com ele não se casaria.
Voltou pra São Paulo e tentou a vida como pode: estudou, deu aulas à crianças, mas desistiu ao se confundir com elas. Os problemas e sonhos da infância ainda não estavam superados. Ela queria mais.
A vida lhe foi boa e ela, muito esperta, deu um jeito de ferrar o tal chefe que era ruim e ela trabalhava como uma condenada e nem recebia por isso porque a empresa estava em crise e não pagava seus subordinados, mas um dia sua sorte virou e ela arranjou um grande emprego. Seria a chefe, mandaria em todos e para completar a felicidade arranjara um namorado.
Todos diziam que eles combinavam feito Eduardo e Mônica e ela acreditou. Mas para seus estagiários nunca falava dele. Preferia se vangloriar das conquistas e trapaças em relação ao seu chefe anterior na tal empresa que, dizia, não paga ninguém. Ou então das noitadas com o cover do Bon Jovi em uma balada que relembrava os anos 80. Ninguém entendia ao certo essa relação, mas ninguém dizia nada.
Até que um dia resolveram se casar e Lucíola achou que este era o momento ideal para ter seu dia de mocinha da história, ou melhor, seu dia de princesa. Mas não sem que esse sonho fosse completo. A lua-de-mel deveria ser, então, na Disney para que ela, princesa, pudesse conhecer seu castelo encantado.
Planejou tudo, contou os detalhes e fez os convites com a figura da branca de neve. Era a personificação total da persanagem. Lucíola não gostava de abstrações e por isso escolheu maçãs do amor para dar de lembrança em seu casamento. Pediu a uma amiga que preparasse e comeu a primeira de todas antes mesmo de se casar.
Mas então não esperava que o sonho de criança viraria pesadelo e a estória de conto de fadas tornasse-se a sua própria história. A maçã, envenenada, lhe cortou a respiração, sufocou as vias respiratórias, acelerou o coração e levou a Branca Lucíola Bretão de Neve ao sono profundo no caixão.
Como não tinha príncipe encantado não pode despertar enfim de seu sono profundo.

07/05/2008

Morte 4 - Shit Happens

Lucíola Bretão não podia acreditar no que haviam feito com seu carro. Ele estava tingido de marrom. Meu Deus! Começou a chorar. Era fim de tarde. Ninguém sabia o que havia acontecido, apenas as câmeras de segurança localizadas do lado de fora da empresa. A maçaneta, as portas, o teto, os vidros todos, tudo estava caprichosamente decorado com excrementos. Cocô de quem? Não se sabia. O cheiro era de bosta, com certeza. A cor também. A textura não havia dúvida. O gosto? Passou por sua cabeça provar, mas só passou. Um milésimo de segundo e logo foi embora. Pensou em sentar no meio fio e esperar o patrão descer. Apontar-lhe incrédula o acontecido e pedir demissão; sim, pedir demissão, porque ninguém merecia aquilo, nem mesmo ela. Não o fez. Precisava daquele emprego. Iria casar. Constituir família. Comprar um castelinho de areia e ir morar dentro dele. Despiu o casaco que lhe protegia do frio. Com ele fez uma luva disforme para sua mão. Abriu a porta e logo ao acomodar-se no acento, jogou o casaco na sarjeta. Uma pena se desfazer de tão bonita vestimenta tecida pelas mão enrugadas de sua vovozinha, mas onde iria guardá-la? Sujar seu carro por dentro também já seria demais. Virou a chave e deu partida no veículo. Devagar foi vencendo a inércia. Contudo não se via absolutamente nada, apenas uma paisagem com tons amarelos, marrons e pretos. Ejetou água sobre o vidro. Acionou o limpador de para-brisa. Movimentos compassados para direita, esquerda, direita... escavando a camada espessa de bosta que encobria seu pára-brisa. Uma semi-circunferência borrada surgiu e Lucíola, finalmente, pode enxergar a rua. Mais tranqüila, ligou seu toca cd e começou a balançar a cabeça horizontalmente ao ritmo da música. 50, 60, 70 Quilômetros por Hora e de repente, não mais, nem menos que de repente, um balde oriundo do céu despencou em cima de seu capô, espirrando o seu conteúdo no pára-brisa. Era merda, novamente. Lucíola se descontrolou, seu carro também. Zigue-zagueou pela rua, mas estabilizou-se; na contramão. Mais uma vez, com ajuda do limpador, Lucíola conseguiu avistar um caminhão que vinha na direção contrária. Desviou. “Ufa! foi por pouco”, iria pensar se no mesmo instante não colidisse com uma carroça que fazia tranqüilamente seu trajeto na pista contrária. Voaram seus dois passageiros: um menino e um homem que parecia ser seu pai. Com o impacto, o pangaré, força de tração do veículo rudimentar, foi jogado para cima, descrevendo uma parábola no ceú. Aterrissou no teto do carro, esmagando a cabeça de Lucíola. A poucos metros dali, o casaco de Lucíola era arrastado pelo vento forte que havia acabado de se iniciar. Um mendigo que passava por ali o viu. Achou a cena bela. Correu para agarrá-lo.