12/11/2008

Morte 7 - Morte prematura

Ao ser expurgada das entranhas de sua mãe, Lucíola não respirava; ficou mais de cinco minutos assim. As marcas do cordão umbilical ainda estavam bem vivas em seu pequeno pescoço. O parteiro, também chamado de obstetra, esperou mais alguns segundos. A pequena não demonstrou nenhuma reação e ele a jogou no lixo do hospital. Ao ser levada pelos garis para dentro do caminhão de detritos, ela deu seu primeiro choro, mas já era tarde demais. Na realidade, ela nem chegou a se chamar Lucíola.

30/05/2008

Morte 5 - Um sonho de infância

Enquanto um tal de João de Santo Cristo sonhava em ser bandido, Lucíola Bretão sonhava em ser a mocinha da história. Mas eles tinham coisas em comum: o pai de ambos tinham morrido com um tiro e não entendiam como a vida funcionava, principalmente por causa da discriminação da sua classe e sua cor.
Então, juntos, cansaram de tentar achar resposta e compraram uma passagem direto para Salvador. O tempo passou e Lucíola não se sentia feliz. Lá não havia festa anos 80 e tão pouco João de Santo Cristo parecia com o Bon Jovi, então decidiu-se que com ele não se casaria.
Voltou pra São Paulo e tentou a vida como pode: estudou, deu aulas à crianças, mas desistiu ao se confundir com elas. Os problemas e sonhos da infância ainda não estavam superados. Ela queria mais.
A vida lhe foi boa e ela, muito esperta, deu um jeito de ferrar o tal chefe que era ruim e ela trabalhava como uma condenada e nem recebia por isso porque a empresa estava em crise e não pagava seus subordinados, mas um dia sua sorte virou e ela arranjou um grande emprego. Seria a chefe, mandaria em todos e para completar a felicidade arranjara um namorado.
Todos diziam que eles combinavam feito Eduardo e Mônica e ela acreditou. Mas para seus estagiários nunca falava dele. Preferia se vangloriar das conquistas e trapaças em relação ao seu chefe anterior na tal empresa que, dizia, não paga ninguém. Ou então das noitadas com o cover do Bon Jovi em uma balada que relembrava os anos 80. Ninguém entendia ao certo essa relação, mas ninguém dizia nada.
Até que um dia resolveram se casar e Lucíola achou que este era o momento ideal para ter seu dia de mocinha da história, ou melhor, seu dia de princesa. Mas não sem que esse sonho fosse completo. A lua-de-mel deveria ser, então, na Disney para que ela, princesa, pudesse conhecer seu castelo encantado.
Planejou tudo, contou os detalhes e fez os convites com a figura da branca de neve. Era a personificação total da persanagem. Lucíola não gostava de abstrações e por isso escolheu maçãs do amor para dar de lembrança em seu casamento. Pediu a uma amiga que preparasse e comeu a primeira de todas antes mesmo de se casar.
Mas então não esperava que o sonho de criança viraria pesadelo e a estória de conto de fadas tornasse-se a sua própria história. A maçã, envenenada, lhe cortou a respiração, sufocou as vias respiratórias, acelerou o coração e levou a Branca Lucíola Bretão de Neve ao sono profundo no caixão.
Como não tinha príncipe encantado não pode despertar enfim de seu sono profundo.

07/05/2008

Morte 4 - Shit Happens

Lucíola Bretão não podia acreditar no que haviam feito com seu carro. Ele estava tingido de marrom. Meu Deus! Começou a chorar. Era fim de tarde. Ninguém sabia o que havia acontecido, apenas as câmeras de segurança localizadas do lado de fora da empresa. A maçaneta, as portas, o teto, os vidros todos, tudo estava caprichosamente decorado com excrementos. Cocô de quem? Não se sabia. O cheiro era de bosta, com certeza. A cor também. A textura não havia dúvida. O gosto? Passou por sua cabeça provar, mas só passou. Um milésimo de segundo e logo foi embora. Pensou em sentar no meio fio e esperar o patrão descer. Apontar-lhe incrédula o acontecido e pedir demissão; sim, pedir demissão, porque ninguém merecia aquilo, nem mesmo ela. Não o fez. Precisava daquele emprego. Iria casar. Constituir família. Comprar um castelinho de areia e ir morar dentro dele. Despiu o casaco que lhe protegia do frio. Com ele fez uma luva disforme para sua mão. Abriu a porta e logo ao acomodar-se no acento, jogou o casaco na sarjeta. Uma pena se desfazer de tão bonita vestimenta tecida pelas mão enrugadas de sua vovozinha, mas onde iria guardá-la? Sujar seu carro por dentro também já seria demais. Virou a chave e deu partida no veículo. Devagar foi vencendo a inércia. Contudo não se via absolutamente nada, apenas uma paisagem com tons amarelos, marrons e pretos. Ejetou água sobre o vidro. Acionou o limpador de para-brisa. Movimentos compassados para direita, esquerda, direita... escavando a camada espessa de bosta que encobria seu pára-brisa. Uma semi-circunferência borrada surgiu e Lucíola, finalmente, pode enxergar a rua. Mais tranqüila, ligou seu toca cd e começou a balançar a cabeça horizontalmente ao ritmo da música. 50, 60, 70 Quilômetros por Hora e de repente, não mais, nem menos que de repente, um balde oriundo do céu despencou em cima de seu capô, espirrando o seu conteúdo no pára-brisa. Era merda, novamente. Lucíola se descontrolou, seu carro também. Zigue-zagueou pela rua, mas estabilizou-se; na contramão. Mais uma vez, com ajuda do limpador, Lucíola conseguiu avistar um caminhão que vinha na direção contrária. Desviou. “Ufa! foi por pouco”, iria pensar se no mesmo instante não colidisse com uma carroça que fazia tranqüilamente seu trajeto na pista contrária. Voaram seus dois passageiros: um menino e um homem que parecia ser seu pai. Com o impacto, o pangaré, força de tração do veículo rudimentar, foi jogado para cima, descrevendo uma parábola no ceú. Aterrissou no teto do carro, esmagando a cabeça de Lucíola. A poucos metros dali, o casaco de Lucíola era arrastado pelo vento forte que havia acabado de se iniciar. Um mendigo que passava por ali o viu. Achou a cena bela. Correu para agarrá-lo.

23/04/2008

Morte 3 - Hello Chucky

Era noite. Madrugada. Já passavam das duas horas. Lucíola, como sempre dedicada, fazia serão. Mas como havia somente ela no caixote de concreto gentilmente chamado de escritório, pensou que não haveria problemas em parar um pouco o ritmo frenético de trabalho intelectual para se dedicar ao que gostava mais: cuidar de sua boneca Hello Chucky. Foi para a sala em que não havia câmeras de vigilância e começou a pentear os cabelos loiros de vassoura piaçava de sua querida boneca. Cantarolava. Sorria. Era o momento mais feliz de seu dia: quando penteava sua boneca. Súbito! A Luz se apagou O breu. Gato mia. Cabra cega. Do lado de fora, os tiros de fuzis da favela vizinha ecoaram, rasgando o silêncio. Lucíola engoliu seco, mas nem houve tempo de pânico. A luz acendeu novamente. O barulho dos computadores esquentando retornaram. Lucíola já se preparava para continuar a escovação quando percebeu. Meu Deus! Onde está Hello Chucky? Sem parar pra pensar, começou a gritar seu nome: Hello Chucky! Hello Chucky!. Mas como ela poderia responder, objeto inanimado que era!? Não respondeu! Mais esperta, desconfiou de que talvez houvesse mais alguém ali; a fim de lhe pregar uma peça. Ei! Quem é que pegou minha boneca? Pare com isso! Creuzo? É você? E as perguntas ficaram sem respostas mais uma vez. De repente, Lucíola ouviu passos vindos da escada. Levantou-se. Questionou em voz alta, novamente: Quem é que tá aí? Nada! Os passos continuaram e ela resolveu seguí-los. Lucíola já se encontrava no meio da escada quando a luz fez-se ausente, mais uma vez. Parou. Ponderou por segundos. Decidiu prosseguir em seu trajeto, corajosamente. Os passos cessaram, mas um outro barulho tomou seu lugar; algo como folhas sendo rasgadas na sala da recepção, detectou Lucíola. Ao adentrar o local, tateando, Lucíola nem pôde respirar direito; foi atacada por um ser diminuto que se agarrou em sua face. A luz voltou, novamente, e Lucíola pôde ver: era a face da loucura, da demência, na frente dos seus olhos; Hello Chucky de olhos arregalados, sorrindo para ela; as duas perninhas rechonchudas bem firmes em seus ombros, uma de suas pequenas mãozinhas de plástico agarrando seus cabelos e a outra, segurando uma folha de uma revista especializada em energia elétrica, que fazia movimentos horizontais e produzia cortes em sua carne. Hello Chucky gritava de prazer. Lucíola estrebuchava de dor. Um peão em cima do dorso do animal. Uma passada da folha fina no pescoço de Lucíola foi o suficiente para abrir-lhe um veio e fazer jorrar o sangue azul real. Hello Chucky saltou, caindo no chão, sentada. Era uma boneca inofensiva novamente. A luz da sala de recepção acompanhou a agonia de Lucíola; entrou em parafuso, acendendo e apagando, enquanto Bretão se debatia entre os móveis, tentando conter o sangue que insistia em escapar pela fresta de seus dedos.

18/04/2008

Morte 2 - A Hora da Estrela

Lucíola entrou naquela sala encardida. Havia seis mesas, divididas em duas fileiras e encostadas perto das paredes. Ninguém ali sequer levantou os olhos na direção da porta para sinalizar que havia notado sua presença. Irritou-se, mas, exceto por uma agitação nervosa na mão direita, permaneceu imóvel.
Respirava abruptamente. As sobrancelhas pesavam. Trazia um papel que precisava ser assinado por uma pessoa dali. A recepção inócua, no entanto, fez com que esquecesse por um momento da obrigação. O objetivo agora era outro.
Precisava dar um jeito de chamar a atenção. Tossiu quixotescamente, porém todos ali eram surdos - pelo menos para ela. Em nenhum momento pensou em dirigir a palavra a qualquer um dos seres que habitavam o recinto. Preferia conversar com as mesas, mas não arriscou, já que elas a tratariam como uma porta. Até que, talvez inspirado pelo cheiro doce e ocre daquele gabinete, um lampejo criativo surgiu na cabeça da moça.
Deu as costas para os burocratas, caminhou para fora da sala e não fechou a porta. "Ei!", gritou alguém. Cinco segundos depois, Lucíola correu para dentro, em direção ao corredor estreito formado pela disposição dos móveis, com os braços estendidos à frente do corpo. Inclinou-se para frente. Os braços apoiaram no chão, as pernas descreveram uma linha curva e os pés apontaram para cima por alguns segundos, tombando em seguida.
O baque surdo do retorno ao solo ecoou. Ela abriu um sorriso e olhou para todos, buscando aprovação. Não obteve resposta. Na sala, apenas as mesas observavam Lucíola. Não entendiam como uma porta poderia virar uma estrela.
Lucíola piscou. Uma, duas, sete vezes por segundo ao quadrado. Berrou um palavrão. Deu chilique. Ninguém se movia. Saiu da sala bufando, até que alguém gritou:
- FECHE A PORTA!
- AH! PARA ISSO VOCÊS DÃO ATENÇÃO? - bradou Lucíola, histérica, voltando ao recinto com um machado.
- Olha o que eu faço com essa porta!, disse, enquanto desferia golpes violentos no já disforme compensado de madeira, até reduzi-lo a pequenas farpas. Ofegante, ajoelhou-se no chão e começou a chorar.
-Fecha a porta! Feche a porta! A porta! Feche a porta! A PORTA! FECHE A PORTA! - ordenavam múltiplas vozes na sala. Lucíola tapava os ouvidos e sacudia a cabeça. Pegou o machado e avançou em direção a uma das mesas.
Um tiro ecoou.
As seis pessoas da sala, incluindo o autor do disparo, fizeram um círculo em volta do cadáver de Lucíola. "Feche a porta", sussurravam. "Feche a porta."
Feche a porta.

01/04/2008

Morte 1

Breno adentrou ao escritório sem janelas. A luz fria trepidava. Antes de receber um oi de Lucíola, já foi sacando da cintura a faca afiada estilo Rambo. Um arremesso seco, certeiro, que foi morrer entre as sombrancelhas peludas de Lucíola. Sua cara de retardada feliz nem se estabeleceu e já deu lugar ao terror. Olhos arregalados, língua para fora. Enquanto estrebuchava no chão, embaixo da mesa, e estendia a mão direita implorando por socorro, Breno sentava-se em frente ao computador. Precisava terminar o trabalho ainda hoje. O famoso dead line.