29/07/2009

Epifania

Breno pensava alto no meio da Avenida Paulista que precisava encontrar inspiração, algo que o conduzisse a um ato extremo e repleto de insanidade, mas que ao mesmo tempo tivesse um significado estrondoso, fosse uma epifania grandiloqüente. Não conseguia mais conter em si a angústia que portava há anos e que tentava transmitir vez ou outra em versos escritos dentro do ônibus, no caminho para casa. Nem ele nem o papel agüentariam por muito tempo o fardo daqueles pequenos momentos de lucidez.
Não se recordava muito bem de quando havia sido a última vez em que fora corroído por qualquer sentimento que viesse das entranhas. Caminhava concentrado na calçada, tentando trazer algo à tona, algo que o despertasse daquele torpor e mansidão com o qual havia se acostumado. “Ódio, preciso sentir ódio”, pensou.
O sábado corria azul enquanto Breno caminhava pelo vão do Masp. Nos vãos de sua mente corriam também os rostos de antigos inimigos que ele tentava ressuscitar. Por um momento, lembrou do último filme do boxeador Rocky Balboa e achou tudo aquilo muito patético. Mas o momento passou e, enquanto ria da sua falta de seriedade, quase foi atropelado na Augusta. O carro tinha um adesivo do Mickey.
Breno piscou satisfeito e caminhou até o metrô.


***


Sexta-feira, dia de fechamento na fortaleza de três andares da rua Catalunha. Passava das 22h e Lucíola tentava recuperar um mês de trabalho atrasado numa única noite. Resmungava para dentro, irritada com a falta de comprometimento dos estagiários em corrigir os parágrafos que ela havia tingido de dourado.
A campainha tocou e Lucíola estranhou. Depois lembrou que havia pedido pizza. Desceu até o portão. O motoboy tinha uma cara estranha. Ela pagou a mercadoria e deu dois reais de gorjeta ao entregador, que perguntou: “Moça, a senhora não tem medo de ficar num lugar desses até altas horas da noite? Essa quebrada é quente.” Lucíola apenas sorriu, feliz por finalmente poder comer alguma coisa. Fechou o portão e subiu as escadas.
Chegando ao escritório, depositou a pizza na mesa de Fábia, com quem havia discutido algumas horas antes. A gordura se condensava nos objetos ao redor. Lucíola regozijava-se e, para completar a lambança, comeu toda a refeição em cima do teclado da colega de trabalho. “A vingança! A vingança!”, pensava. De repente, as palavras do motoqueiro começaram a ecoar em sua cabeça. Não lembrava se havia efetivamente trancado o portão e ficou com medo.
Desceu as escadas pé ante pé, na expectativa de que algo temível poderia acontecer. Não havia sinal de vida por ali, nem dentro do prédio nem na rua. Ela conferiu as fechaduras da entrada - tinha efetivamente esquecido de fechá-las. Sacou a chave do bolso e virou-a duas vezes na tranca. "Seguro morreu de velho", pensou.
De volta ao escritório, suspirou de preguiça. Não queria mais trabalhar, mas mesmo assim sentou-se de frente para o computador. "Vamos acabar logo com isso", decidiu. Começou a digitar loucamente seu editorial. O tema era... era... não havia pensado em um tema. Voltou a se desesperar e bateu a cabeça levemente no tampo da mesa. "Por que eu não ganho na mega-sena?"
Abriu a gaveta e pegou uma garrafa de saquê. Tomou alguns goles. Lembrou de uma vez que ficou bêbada e acabou bitocando uma amiga. A amiga tinha sido mais ousada. Escorregara a mão pelo corpo de Lucíola lascivamente. "Não ficarei bêbada!", ordenou a si mesma.

***

Acordou assustada com o barulho de passos na escada. Estava meio zonza. Cambaleou até a porta da sala e acendeu a luz. Viu o Mickey Mouse no corredor. Ele segurava uma faca de cortar pão. "Estou tendo um pesadelo", pensou Lucíola. Mickey aproximava-se cada vez mais. Ela não tinha reação. De repente, como em um número circense, Mickey atirou a faca em Lucíola. A arma rodopiou e estacionou no meio do peito da moça, cravada como uma estaca no coração de um vampiro.
Mickey observava Lucíola morrer lenta e silenciosamente, quando sentiu uma mão tocar em seu ombro. Olhou para trás. Era o Pateta.
"Caralho", exclamou o roedor. "Quem é você?"
"Seu filho da puta!", disse Pateta, apontando um revólver para o assassino. "Você roubou a minha idéia! Tire essa máscara! Quero ver a sua cara antes de te fazer engolir chumbo!"
Mickey estava com as mãos para cima, rendido. Não entendia... era o plano perfeito. Quem poderia estar ali, na madrugada de um sábado, fantasiado de personagem da Disney para assassinar Lucíola? Ele havia tido uma epifania... somente ele... era o assassinato perfeito. Lembrou que havia uma arma apontada para seu cabeção fantasiado. Tirou a máscara.
"Não acredito... Saulo Ravioli!?", exclamou, embasbacado, o Pateta.
"Quem é você? De onde me conhece?", perguntou Saulo.
Pateta não entendia. Era o plano perfeito. Achou que apenas ele poderia pensar em ir até aquela editora, de madrugada, fantasiado de Pateta - porque algum imbecil já alugara a fantasia de Mickey - para assassinar Lucíola. Ele havia tido uma epifania... somente ele... era o assassinato perfeito.
"Saulo Ravioli... não pode ser. Você matou a Lucíola..."
"Matei mesmo!", disse Saulo. "E daí que eu escrevi matérias baseado na Wikipédia? Que desonra há nisso? E daí que eu falo de um jeito que coloca em dúvida a minha virilidade? Eu gosto é de mulher! Ela não podia ter me demitido... não podia! E sabe quem vai ser a minha próxima vítima? A FÁBIA! HAHAHAHA!"
"Não!", exclamou Pateta. "A Fábia é minha amiga! Ela pode gostar de Teatro Mágico e de ir na festa do peão de Barretos, mas mesmo assim não merece esse destino."
"E quem é que vai me impedir? Você, PATETA?", disse Saulo, num tom afetado, liberando uma gargalhada histérica em seguida.
Um tiro ecoou.
Mickey caiu morto.
Pateta tirou a máscara. Consumou seu ato grandiloqüente, ainda que de forma torta. Pegou um pedaço de pizza que restava sobre a bancada e foi embora.

26/07/2009

O papel e a lasanha

Uma mulher jazia atropelada – e talvez morta – no asfalto velho da Avenida Jaguaré. Era um dia de inverno estranho e úmido e Lucíola voltava para casa no conforto do seu carro. Aguardava o trânsito fluir e, enquanto isso, observava a ambulância do resgate e a cena do acidente. Tentou em vão descobrir alguma coisa por entre as frestas de pernas e braços das pessoas que rodeavam o local. O semáforo abriu e ela acelerou.
Quando escolheu a faculdade de jornalismo, não esperava ter de escrever sobre lâmpadas. Esse tipo de pensamento sempre passava correndo pela sua cabeça quando saía do trabalho. Devia ser um sinal de infelicidade. Mas quem é feliz hoje em dia, questionava a si mesma. O semáforo fechou.
Uma chuva grossa começava a cair no pára-brisa. Estava resfriada. Tentou alcançar uma caixa de lenços no porta-luvas. Assoou o nariz com muita vontade, mas não saiu nada. Abriu o vidro para jogar o papel pela janela. Olhou em volta para checar se não havia autoridade que pudesse multá-la. Não viu ninguém. Alguém buzinou.
Lucíola ficou confusa. Devia ter se distraído. Agora não sabia se jogava fora o lenço, se saía do lugar ou se fechava o vidro para impedir que a chuva caísse dentro do carro. Tentou fazer os três. Engatou a segunda marcha e saiu trepidando. A mão direita no volante, a esquerda jogando o papel pela janela. Ouviu alguém xingá-la. Fechou o vidro com medo e, pelo retrovisor, tentou identificar à distância a origem do palavrão. Era um ciclista que tentava tirar os restos do lenço molhado da própria cara. Mais adiante, o semáforo fechou.
Ela gargalhava. Há tempos não ria desse jeito nem achava algo tão hilário. “Coitado, fodido e mal pago”, pensou, já planejando narrar sua aventura no dia seguinte para os subordinados. Sonhava mais alto até. Imaginava que poderia contar a situação inusitada numa crônica, escrever um livro, dar autógrafos, ser famosa por coisas outras que não a edição de revistas segmentadas. O semáforo abriu.
O telefone tocou. Era o chefe perguntando se a edição do mês já havia sido fechada e gritando após receber uma negativa. Ela tentava manter a pose, respondendo todas as ofensas com voz mansa e subjugada. Faltava pouco para chegar em casa e poder preparar uma lasanha. Não deixaria o patrão estragar seu bom humor.
Desligou o celular com a orelha e os olhos vermelhos.
Entrou no estacionamento do prédio e parou o carro. Respirou aliviada. Não havia mais chuva, patrão, trânsito... Subiu ao apartamento. Checou a secretária eletrônica. Nenhuma mensagem. Ligou a televisão para lhe fazer companhia enquanto o marido não chegava. No ar um programa policial mostrava imagens de um acidente de trânsito. “Na Avenida Jaguaré, uma senhora atropelada – bota na tela, Gilmar”. A mulher havia sobrevivido, mas provavelmente carregaria graves seqüelas. O atropelador não havia prestado socorro.
“Essa senhora deu sorte, mas perto dali - olha só que coisa, minha gente - cinco pessoas mortas por causa de um papel jogado pela janela! Na tela, Gilmar”. Correu um arrepio pela espinha de Lucíola. O ciclista permaneceu parado no meio da rua. Um caminhão não conseguiu frear por causa da pista molhada e tentou desviar. Foi parar numa árvore que caiu em cima de outro carro. Morreram o motorista do caminhão e as quatro pessoas do veículo esmagado pela árvore. O ciclista sobreviveu, mas não sabia dizer quem tinha lhe atirado o lenço de papel na cara – não conseguiu enxergar a tempo.
“Tá ouvindo aí, ô porco? Olha o que você fez! Por sua culpa cinco pessoas morreram. Tinha que fuzilar um canalha desse! Mandar limpar bueiro o resto da vida!”, gritava o apresentador, olhando ferozmente para o telespectador. Lucíola encarava a tela incrédula. Sentia um remorso branco e sem gosto. Teria sido tudo aquilo culpa dela mesmo? Foi, na verdade, culpa do ciclista imbecil.
A campainha tocou. Dois policiais estavam na porta. “Não pode ser. Deve ser alguma outra coisa”, pensou. Abriu a porta e tentou demonstrar indiferença. “Lucíola Bretão?”, perguntou o coxinha. Ela confirmou. “A senhora está presa. Mão na cabeça.”

***

Valdomiro tentava entrar na garagem sem atropelar ninguém. Havia muita gente na frente do prédio, uma ambulância e duas viaturas. “Puta merda... devem ter tentado assaltar”. Subiu ao hall do edifício e o porteiro já veio lhe pedindo calma. “Calma por que, José? O que aconteceu?”
Lucíola havia queimado um semáforo com radar e foi delatada pela foto, que retratava quase o momento exato em que ela jogou o papel sujo no ciclista. Ia ser presa sob acusação de cinco homicídios culposos e agora agonizava no jardim do condomínio.
“Ela pulou sozinha. Não queria ser presa”, disse o policial, quando Valdomiro chegou ao local. Lucíola estava toda quebrada, havia sangue na grama. Ele se aproximou da esposa moribunda que revelou, em seu último suspiro: “A lasanha está no forno...”