26/07/2009

O papel e a lasanha

Uma mulher jazia atropelada – e talvez morta – no asfalto velho da Avenida Jaguaré. Era um dia de inverno estranho e úmido e Lucíola voltava para casa no conforto do seu carro. Aguardava o trânsito fluir e, enquanto isso, observava a ambulância do resgate e a cena do acidente. Tentou em vão descobrir alguma coisa por entre as frestas de pernas e braços das pessoas que rodeavam o local. O semáforo abriu e ela acelerou.
Quando escolheu a faculdade de jornalismo, não esperava ter de escrever sobre lâmpadas. Esse tipo de pensamento sempre passava correndo pela sua cabeça quando saía do trabalho. Devia ser um sinal de infelicidade. Mas quem é feliz hoje em dia, questionava a si mesma. O semáforo fechou.
Uma chuva grossa começava a cair no pára-brisa. Estava resfriada. Tentou alcançar uma caixa de lenços no porta-luvas. Assoou o nariz com muita vontade, mas não saiu nada. Abriu o vidro para jogar o papel pela janela. Olhou em volta para checar se não havia autoridade que pudesse multá-la. Não viu ninguém. Alguém buzinou.
Lucíola ficou confusa. Devia ter se distraído. Agora não sabia se jogava fora o lenço, se saía do lugar ou se fechava o vidro para impedir que a chuva caísse dentro do carro. Tentou fazer os três. Engatou a segunda marcha e saiu trepidando. A mão direita no volante, a esquerda jogando o papel pela janela. Ouviu alguém xingá-la. Fechou o vidro com medo e, pelo retrovisor, tentou identificar à distância a origem do palavrão. Era um ciclista que tentava tirar os restos do lenço molhado da própria cara. Mais adiante, o semáforo fechou.
Ela gargalhava. Há tempos não ria desse jeito nem achava algo tão hilário. “Coitado, fodido e mal pago”, pensou, já planejando narrar sua aventura no dia seguinte para os subordinados. Sonhava mais alto até. Imaginava que poderia contar a situação inusitada numa crônica, escrever um livro, dar autógrafos, ser famosa por coisas outras que não a edição de revistas segmentadas. O semáforo abriu.
O telefone tocou. Era o chefe perguntando se a edição do mês já havia sido fechada e gritando após receber uma negativa. Ela tentava manter a pose, respondendo todas as ofensas com voz mansa e subjugada. Faltava pouco para chegar em casa e poder preparar uma lasanha. Não deixaria o patrão estragar seu bom humor.
Desligou o celular com a orelha e os olhos vermelhos.
Entrou no estacionamento do prédio e parou o carro. Respirou aliviada. Não havia mais chuva, patrão, trânsito... Subiu ao apartamento. Checou a secretária eletrônica. Nenhuma mensagem. Ligou a televisão para lhe fazer companhia enquanto o marido não chegava. No ar um programa policial mostrava imagens de um acidente de trânsito. “Na Avenida Jaguaré, uma senhora atropelada – bota na tela, Gilmar”. A mulher havia sobrevivido, mas provavelmente carregaria graves seqüelas. O atropelador não havia prestado socorro.
“Essa senhora deu sorte, mas perto dali - olha só que coisa, minha gente - cinco pessoas mortas por causa de um papel jogado pela janela! Na tela, Gilmar”. Correu um arrepio pela espinha de Lucíola. O ciclista permaneceu parado no meio da rua. Um caminhão não conseguiu frear por causa da pista molhada e tentou desviar. Foi parar numa árvore que caiu em cima de outro carro. Morreram o motorista do caminhão e as quatro pessoas do veículo esmagado pela árvore. O ciclista sobreviveu, mas não sabia dizer quem tinha lhe atirado o lenço de papel na cara – não conseguiu enxergar a tempo.
“Tá ouvindo aí, ô porco? Olha o que você fez! Por sua culpa cinco pessoas morreram. Tinha que fuzilar um canalha desse! Mandar limpar bueiro o resto da vida!”, gritava o apresentador, olhando ferozmente para o telespectador. Lucíola encarava a tela incrédula. Sentia um remorso branco e sem gosto. Teria sido tudo aquilo culpa dela mesmo? Foi, na verdade, culpa do ciclista imbecil.
A campainha tocou. Dois policiais estavam na porta. “Não pode ser. Deve ser alguma outra coisa”, pensou. Abriu a porta e tentou demonstrar indiferença. “Lucíola Bretão?”, perguntou o coxinha. Ela confirmou. “A senhora está presa. Mão na cabeça.”

***

Valdomiro tentava entrar na garagem sem atropelar ninguém. Havia muita gente na frente do prédio, uma ambulância e duas viaturas. “Puta merda... devem ter tentado assaltar”. Subiu ao hall do edifício e o porteiro já veio lhe pedindo calma. “Calma por que, José? O que aconteceu?”
Lucíola havia queimado um semáforo com radar e foi delatada pela foto, que retratava quase o momento exato em que ela jogou o papel sujo no ciclista. Ia ser presa sob acusação de cinco homicídios culposos e agora agonizava no jardim do condomínio.
“Ela pulou sozinha. Não queria ser presa”, disse o policial, quando Valdomiro chegou ao local. Lucíola estava toda quebrada, havia sangue na grama. Ele se aproximou da esposa moribunda que revelou, em seu último suspiro: “A lasanha está no forno...”

Um comentário:

BDA disse...

"A lasanha está no forno". garota safada!