30/09/2009

Morte 16 - Tinha que ser ou Premonição 5

Lucíola acordou. Se espreguiçou e ouviu com um prazer masoquista os ossinhos de suas costas estralarem. Levantou lentamente da cama e se dirigiu ao banheiro. Em frente à pia, abriu a torneira e começou a jogar água no rosto. Abriu os olhos e tomou um susto ao ver sua cara amarrotada refletida no espelho. Pôs-se a escovar os dentes. Esfregadas compassadas: pra cima e pra baixo como o dentista havia lhe ensinado. De repente, vai saber lá por quê, Lucíola resolveu olhar seu relógio e viu que já estava atrasada. Nesse momento, no afã de se assear rapidamente, descurou-se de suas escovadas orquestradas e engasgou-se com a espuma advinda da pasta dental atritada. Ficou vermelha, desesperada, viu seus olhos se arregalarem no espelho, estava quase perdendo os sentidos quando escorrregou e ao bater a parte posterior da cabeça no azulejo consegui expelir em um jato a gosma que lhe atravancava a glote. O ar veio-lhe das profundezas, respirou faminta de oxigênio, aliviada!Ufa! Quase! Levantou-se, vestiu-se, ainda traumatizada pelo acontecimento precedente. Despediu-se do marido, rapidamente, e saiu.

O elevador demorou alguns minutos. Estava no quinto, foi até o décimo terceiro, desceu até o térreo, tudo isso ignorando o chamado de Lucíola que morava no sexto andar. Quando o elvador chegou, Lucíola já estava impaciente, desesperada, quase histérica pela bronca que tomaria pelo atraso. Bronca revestida de ironia. Veneno que ela tanto gostava de destilar nas pessoas. Veneno das almas pequenas. Lucíola entrou na jeringonça. Corrigiu sua postura bruscamente e suas costas estralaram novamente. Aproveitou o ensejo e soltou um pum, aliviada. O elevador parou no quarto andar e ela gelou. O cheiro estava de matar. Ela até gostava, mais, porque era seu, outros, provavelmente, não teriam a mesma opinião e poderiam até vomitar o desjejum matinal ao terem suas narina invadidas por tal podridão. Por sorte, o elevador continuou o percurso com a mesma quantidade de pessoas com o qual havia começado: Lucíola. No primeiro andar, já se preparava para sair. Virou a cabeça de um lado para o outro e dessa vez foi a vez de os ossinhos internos de seus ouvidos estralarem. Gostoso! Mas o andar térreo não chegou, pelo menos não naquele momento. O elevador estacou e as luzes se apagaram, Lucíola desesperou-se, exasperou-se, praguejou, estrebuchou. Era muito azar. Atrasada e presa no elevador! Poucos segundos depois, sua agonia estava findada, as luzes se acenderam e a engenhoca mecânica se encontrava em atividade novamente... subindo e não descendo. Ela não entendeu nada! Como assim? O elevador que estava no primeiro andar agora estava no quinto e parecia que devolveria Lucíola ao início. Nada, passou batido e sua velocidade começou a aumentar. Subia freneticamente. Lucíola desesperada, com o coração palpitante, pensava, agora eu vou morrer!, não tem jeito. Do antipenúltimo para o quase último andar sua velocidade diminuiu, parando suavemente no décimo nono e último andar. Lucíola, assustada, incrédula, preparou-se para apear-se. Vou de escada. Mas a porta não abriu e o elevador, dessa vez, começou a descer, vertiginosamente. Não teve jeito, Lucíola apagou. Foi acordada meia hora depois pelo porteiro que deu com gosto alguns tapas nas bochechas dela. Meu Deus! disse. Estou viva ou em um céu cheio de gente feia! O porteiro Valdenor não gostou nada dessa piada e pensou que um céu cheio de gente feia era bem apropriado para aquela fubanga. Mas o elevador não estava caindo? Aparentemente, pelo que o técnico me disse, ele travou no quarto andar. Uma pena não é verdade?, disse Valdenor. Lucíola viu que aquilo era uma malcriação. Devia tomar uma atitude, forçar a demissão daquele funcionário insolente, mas não era hora, estava, agora, muuuiiiiitoooo atrasada, faria aquilo depois.

No trajeto de carro para empresa onde trabalhava nada de muito estranho aconteceu, apenas algumas barberagens realizadas por Lucíola, que ouvindo música no último volume se desgarrou de algumas faixas, descrevendo zigues-zagues inimagináveis em vias expressas. De praxe. Todos são e salvos. Lucíola chegou ao edifício do trabalho com um hora de atraso, mas, mesmo assim, não quis pegar o elevador. "Gata" escaldada resolveu subir os oito andares a pé. Não adiantou muito; em um dos degraus o salto de Lucíola quebrou e ela perdeu o equilíbrio; seus braços começaram a rodopiar loucamente, pateticamente, em busca de forças para evitar a queda; seu tronco, lentamente, foi pendendo para trás e quando ela deu por si já estava rolando "ladeira abaixo". Felizmente pra ela ( e infelizmente para Valdenor e uma dezena de outras pessoas), nesse mesmo momento, uma funcionário do sétimo andar saía do elevador e observando aquela cena consegui interceptar a bola de boliche humana e evitar que mais estragos acontecessem. Lucíola estava confusa. Feliz por não ter quebrado o pescoço e ter saído daquele acidente com apenas algumas escoriações e um galo na cabeça; assustada por não saber o que estava acontecendo. Como era possível tanta desgraça num dia só? Pensando que desgraça, assim como tantas outros, é uma noção subjetiva; algo que podia ser desgraça pra ela, certamente, não era para os demais, Valdenor included! Seria apenas coincidência?

O dia, finalmente, iria começar. E pensando isso, Lucíola deu uma risadinha com o canto da boca. Iria começar? Senão começou até agora o que foram aquelas coisas estranhas que aconteceram comigo? Chegou com cara de acabada no escritório. Amarrotada, rota, esgarçada. Niguém reparou. Contrariando suas expectativas, ninguém disse que ela estava atrasada, o que era ótimo pra sua baixa auto-estima. Antes de sentar foi até a máquina de café expresso. Era precico encher aquela pança com alguma coisa. Além do que, café era bom para acordar e ela precisava acordar daquele pesadelo horrível. O dia transcorreu sem muitas perturbações. Finalmente, as coisas pareciam estar entrando nos trilhos! Hora de almoço, Lucíola percorreu o caminho até o restaurante mais próximo com muito cuidado. Sempre atenta àquilo que poderia ser o próximo acidente, dessa vez, fatal. Nada ocorreu. Não despencou de elevador, não foi atropelada na rua e não engasgou com a comida. Na volta, tudo na mais perfeita paz, também. Lucíola até sentiu-se feliz, alegre, por estar viva, respirando, saltitando e saltitante foi que ela resolveu fazer um ato de pura abnegação. Precisava tirar xerox de alguns documentos e poderia realizar o mesmo serviço para quem estivesse precisando. Ninguém quis. Contrariando suas expectativas. Lá foi ela, meio macambuzia. Ligou a máquina, abriu-a, colocou os papéis, programou-a. Olhou para o chão. Fio da tomada esticado. Perigo à vista! Ainda bem estava atenta a tempo de com um pequeno movimento pular o obstáculo. Mas nesse pulo desengonçado, seu braço descoordenado levou sua mão a bater num copo de água, que ela mesma havia deixado na máquina ao lado, e derrubá-lo, fazendo a água se espalhar no chão e se misturar com o pó acumulado. Simultaneamente, ao finalizar seu salto, colocando suas duas patinhas no chão, Lucíola ficou sem porto seguro. Começou a patinar em cima da lama que estava criando. Meu Deus! iria cair novamente. Como medida de salvação abriu o espacate, rasgando, assim, sua calça novinha. Foi e voltou com o movimento, não o realizou de forma completa e quando pensou que a situação já estava sob seu controle, escorregou. Primeiro o pé direito chicoteou no ar, depois o esquerdo seguiu sua direção. Caiu de costas, em cima do fio esticado, que desatou-se da tomada, levando junto a máquina de xerox, que iria cair sobre a cabeça de Lucíola não fosse a intervenção de um pequeno armário. Este, com a queda de Lucíola, inclinou-se em um ângulo de 45º, escorando-se na mesa onde estava depositada a máquina, formou uma cabana protetora para ela e fez com que a máquina escorre-se suavemente até a parede. Com essa insondável sequência de acontecimentos, Lucíola, novamente, escapou ilesa. O que não a deixou muito feliz. Não era possível, foi até ao banheiro, chorando, e vomitou o almoço, na privada.

Para não dizer que ninguém reparou no acontecido, a faxineira, duas horas depois, passou na sala do xerox para limpar os lixinhos, vendo aquela cenário de guerra, indagou: O que aconteceu aqui? Quem fez isso? Do fundo da grande sala, viu uma mão levantar-se. Era Lucíola. Dona Gervásia, a empregada, resmungou baixinho, foi buscar a vassoura. Alguém precisava limpar aquela bagunça! Também não ia muito com a cara daquela de Lucíola, a quem chamava de Doida varrida! Lucíola afundou-se em sua cadeira, trancou-se em sua baia. Parecia matutar alguma coisa. Oito da noite. A maioria dos funcionários já havia deixado o prédio. Estava lá, apenas Lucíola e o dono da empresa - o verdadeiro dono e não o filho dele - seu Maia. Aliás, ele era o único que parecia ter algum respeito por Lucíola, que demonstrava alguma afeição por ela. Tchau menina! Vai ficar aí? Já tô indo, seu Maia, já tô indo. Quer que eu te espere? Lucíola, ponderou uns segundos. Não! Não precisa. Seu Maia saiu. Lucíola ficou ouvindo o barulho do elevador chegar. Assim que se certificou de que estava sozinha foi até a janela e se atirou. A morte precisava ser ajudada.

4 comentários:

Gustavo disse...

Demorou para escrever, mas se superou. HAHAHA!

Flávia disse...

Sensacional!! E eu consigo imaginar cena por cena... ahahahaha

Non je ne regrette rien: Ediney Santana disse...

adorei todas as mortes

Laíza disse...

estamos no final de 2010... onde estão as atualizações? vc tem seguidores, honre isso