24/05/2009

Morte 10 - Obrigado por tudo

Saiu do restaurante com um cheiro de fritura na roupa. Há meses estava nesta situação, escrevendo sobre como é saudável as crianças comerem hambúrgueres e batatas fritas, impregnando-se daquela rotina maçante e polvilhada de hipocrisia. Mas não estava em posição de exigir coisa melhor. Na verdade, aquilo era o que de melhor havia alcançado até aquele momento. “É só um trabalho”, repetia a si mesma, tentando redimir a mediocridade da situação.
Chegou cedo em casa e sentou no sofá. Pensou nas coisas que ainda precisava fazer, no marido... O sono veio logo. Sonhou com o antigo emprego, com as ordens que despejava nos estagiários e com a submissão raivosa ao maldito diretor da empresa. Acordou nervosa e com sede. “Filho da puta”, murmurou, com voz embriagada.
Levantou-se para pegar um copo d’água e, no caminho para a cozinha, ligou o computador. Encheu um copo meio ensebado que estava perto do filtro e bebeu tudo. Voltou para a sala e foi checar e-mails.
Havia trinta mensagens na caixa de entrada, mas apenas uma lhe chamou a atenção. Era um convite para um happy hour, enviado pelas pessoas do antigo emprego. “Que coincidência”. Uma reunião casual, regada à cerveja num desses bares que se pretendem chiques perto da Paulista, às 19h30.
“Alô? Oi, querido. Você vai chegar tarde hoje? Jantar com quem? Não gosto desse cara. Tudo bem. Eu vou dar uma saída, encontrar umas amigas. Mais tarde a gente conversa. Tchau.”
Claro que não haveria só amigas no boteco – se é que haveria amigas, afinal aquelas pessoas não eram confiáveis. Também estaria lá aquele estagiário que a encarava descarada e despudoradamente nos dias de calor. “Nunca me olhava nos olhos, o safado. Agora já deve até ter cabelo no peito, afinal faz tanto tempo.”
Entrou embaixo do chuveiro e a água, inicialmente fria, deixou-a gelada. Deu um pulinho para trás e a barriga chacoalhou com um movimento mole e adiposo. Incomodou-se com a própria nudez e sentiu vergonha. Tomou o banho rapidamente, tentando lembrar onde estaria aquela meia-calça milagrosa que reduz a cintura e contraria a gravidade.
Vestiu uma roupa descolada e passou aquele perfume ma-ra-vi-lho-so de baunilha. “A noite vai ser boa...”, cantarolava ao sair do apartamento. Quando colocou a chave do carro no contato, lembrou: “Não escovei os dentes”.

***


Já era a quarta cerveja que bebia. Em volta, aqueles rostos familiares de pessoas praticamente desconhecidas. “Gente, comprei o último exemplar do Harry Potter! O Voldemort é gay! GAY!”, berrava, batendo na mesa como um lenhador barbudo. Os ex-colegas de trabalho riam, meio constrangidos com a situação, mas sem poder deixar de admitir como era engraçada a exposição daquela mulher bêbada.
O estagiário, agora com cabelo no peito, observava a situação. Estava mais maduro, mas o tempo ainda não havia apagado velhos hábitos, como o de olhar fixamente para o busto de sua ex-superiora. “Já vi melhores, mas eles continuam sensacionais”, pensava, coçando o cocuruto.
“Concordo”, disse uma voz sarcástica. O estagiário olhou para direita. Era Breno, que sorria de forma sacana e erguia a sobrancelha em direção à moça.
Estava zonza e sem filtros. “Estou trabalhando na assessoria do Méqui, ganho lanche e aqueles brinquedos que vem junto com o sanduíche todos os dias. O mais bonitinho é o do Mickey! Lembra a minha lua-de-mel.”
Já passava da 1h. A noite estava fria. Foi então que Fábia, uma das três moças que haviam comparecido ao evento, levantou-se da cadeira e pediu silêncio, emendando em seguida: “Lucíola, estamos muito felizes com a sua vinda a este happy hour”. Lucíola, que agora já passava da sétima cerveja, apenas piscou e sorriu de forma descoordenada.
Fábia continuou o discurso: “Se não fosse por você, essas mais de dez pessoas que cá estão jamais teriam se conhecido, sequer estariam bebendo e se divertindo numa noite como essas. Vamos brindar!” O garçom trouxe uma bandeja cheia de caipirinhas, todas elas de limão. A de Lucíola era a exceção – havia sido feita com um limão marroquino meio amarelado.

Tim-tim!

Depois que todos brindaram, a homenagem continuou: “Lucíola, você foi o elo, a cola que nos uniu durante os últimos anos. Quantas vezes nós, seus ex-subalternos, não nos encontrávamos nos bares da cidade apenas para comentar sobre a sua loucura infantil, sua megalomania e seu comportamento passivo-agressivo? Ou para falar mal da sua vida amorosa e dessa sua cara de pão sírio!”
Fábia fez uma pausa. Lucíola ainda sorria docemente, aparentemente sem compreender uma só palavra dita até então. Waleska, que tinha cabelos tingidos, sacou uma caneta marca-texto amarela do bolso e, rindo de prazer, esfregou-a em toda a face de Lucíola. “Checa os amarelinhos para mim, Lu?”, exclamou, em tom insano. “Fiquei com dúvidas... Rá! Rá!”
Lucíola, que agora aparentava ter doença de fígado, não se sentia bem. A vontade era apenas de fechar os olhos e dormir. Tentou deitar-se sobre a mesa, mas havia um par de braços esticados em direção ao seu tronco. O estagiário apertava seus peitos. “É, já vi melhores mesmo”, afirmou.
Fábia retomou o discurso. “Você deve estar cansada, quer fechar os olhos, não é? Sabe por quê? A sua caipirinha foi feita com álcool zulu e você está entrando em coma alcoólico. Mas onde foi que eu parei? Ah, sim! Sua existência foi algo útil. Veja só: Zizi e Otávio, que se conheceram porque você os contratou, estão prestes a casar. Mas você não será a madrinha.”
Breno havia pedido a conta, que chegou rapidamente e foi paga com a mesma presteza. Momento de despedidas, beijinhos e abraços.
Antes de ir embora, Fábia sussurrou no ouvido de Lucíola: “Também tinha veneno na caipirinha. Não sabíamos se o coma alcoólico conseguiria matar você”. Arrumou o cabelo e acrescentou: “aliás, o veneno foi cortesia do Arnolfo e, antes que eu me esqueça, obrigado por tudo, princesa”.

4 comentários:

BDA disse...

Hum! acho que reconheço essas pessoas... mas quem é Arnolfo?

Anônimo disse...

ahahhahahaha astolfo tb serviria, não????

Flá disse...

kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
Estou no trabalho e rindo pelos olhos (sim, estão lacrimejando) para evitar uma gargalhada alta a cada frase lida! Sensacional!!!!!!! Que genialidade!!!! Aliás, gostei dessa Fábia. Moça astuta, dissimulada, intrépida... ahahahahahhah

Anônimo disse...

Nuuuu, que história e que fôlego! Muito bom!!!!